Artigo ajuda a entender imponentes construções da maior metrópole americana do período Clássico.
Por: Leila Maria França
Quem visita hoje Teotihuacan, situada a 45 km da atual Cidade do México, admira-se ao perceber, em suas ruínas, a imponência da civilização que lá vivia. Que povo construiu monumentos tão impressionantes? Com que objetivo? Que tipo de governo conseguiu levar Teotihuacan a tamanhas proporções? E quais as causas de seu desaparecimento? Estas são algumas perguntas que os arqueólogos tentam responder, buscando um maior conhecimento sobre a influente e poderosa sociedade que habitava a chamada ‘cidade dos deuses’.
Hoje, centenas de turistas chegam ao México todos os dias para visitar as ruínas do que foi Teotihuacan – a grande metrópole americana do período Clássico (100-750 d.C). O vale de Teotihuacan é uma planície verde, cercada por duas cadeias de montanhas, em que sobressai o Cerro Gordo, ao norte da cidade.
Cravadas nesta imponente paisagem estão as duas grandes pirâmides do Sol e da Lua, visíveis de vários pontos do município de S. Juan de Teotihuacan. Ao entrar pela porta 2 da zona arqueológica, o visitante caminha alguns metros e, à subida do primeiro lance de escadas, uma surpresa: a gigantesca Pirâmide do Sol, com seus 64 m de altura, é um espetáculo de grande impacto.
Há mais ou menos seis séculos, um povo que se autodenominava mexica (os astecas) já visitava esse lugar de ruínas impressionantes, e o êxtase dos olhos exigia igualmente uma explicação, ainda que de caráter essencialmente diferente das explicações atuais: essa cidade era Teotihuacan, cujo nome significa literalmente “o lugar onde alguém se torna deus”.
As origens de Teotihuacan ainda são muito discutidas. As evidências arqueológicas indicam que o vale de Teotihuacan foi povoado muito antes da era cristã, mas os registros mais efetivos de uma sociedade estatal datam do final da fase Tzacualli (1-150 d.C.). Há mais ou menos 2.300 anos, enquanto no Velho Mundo o Império Romano estava em pleno florescimento, aqui, no continente americano, um grande número de pessoas migrava ao vale de Teotihuacan devido à erupção do vulcão Xitle, que teria destruído Cuicuilco – o então centro regional ao sul do vale do México.
Pessoas procedentes de diversas regiões e etnias chegaram a Teotihuacan atraídas pelo clima ameno da região, pela circulação de mercadorias e pelas atividades religiosas. Um levantamento da concentração cerâmica realizado pelo Projeto de Mapeamento de Teotihuacan, dirigido pelo topógrafo francês René Millon, da Universidade de Rochester, Estados Unidos, permitiu calcular a população aproximada em cada etapa do desenvolvimento da cidade. Segundo esses cálculos, durante o primeiro século da nossa era, a população atingiu 30 mil habitantes, os quais se agrupavam em bairros, de acordo com sua origem, parentesco ou ocupação.
A construção de diversos edifícios públicos, a maior parte com materiais perecíveis, revela um processo de mudanças que levou a cidade à condição de grande metrópole regional. Entre tais modificações destacam-se uma marcada divisão da sociedade, uma maior organização do trabalho agrícola e artesanal e das redes comerciais e o fortalecimento do poder estatal.
Entre tais edifícios, estavam as pirâmides do Sol e da Lua. A cidade, conforme seu plano-mestre, era dividida em quatro quadrantes, que lhe dava um aspecto semelhante a uma flor de quatro pétalas – era cortada no sentido Norte-Sul pela avenida dos Mortos (assim denominada pelos arqueólogos devido à presença de enterramentos ao longo de suas margens) e no sentido Leste-Oeste pela chamada avenida Leste-Oeste.
A Pirâmide da Lua foi erigida precisamente ao norte, alinhada com o Cerro Gordo, e tem aos seus pés o inicio da avenida dos Mortos. Ao leste desta localiza-se a Pirâmide do Sol, orientada a oeste, posição que revela a importância do culto solar dentro da religião teotihuacana. Atualmente, ao tomar a avenida dos Mortos, o visitante caminha em torno de 2, 5 km desde os limites da Zona Arqueológica, antes da Cidadela – o mais importante centro político da cidade – até à Pirâmide da Lua. No auge de Teotihuacan (300-550 d.C.), quando a Pirâmide da Lua foi construída, esta se estendia 1,5 km para além da Cidadela, em um percurso total de 4 km.
Entre 150 e 200 d.C. (fase Miccaotli), a cidade cresceu muito, atingindo quase sua extensão máxima – aproximadamente 22 km 2 – e uma população em torno de 45 mil habitantes. Nessa época foi concluída a construção das grandes pirâmides e foram levantados outros edifícios importantes, no estilo Talud-tablero, característico de Teotihuacan, que consiste em uma solução arquitetônica em que se constroem plataformas horizontais sobre uma parede inclinada para lhes dar maior sustentação. Entre tais construções, destaca-se o Templo de Quetzalcóatl – pirâmide escalonada com esculturas de serpentes emplumadas, onde foram enterradas inúmeras oferendas com guerreiros sacrificados – que encarnava o mais importante centro religioso e político da cidade.
Religião Teotihuacana
Tais construções revelam que já por essa época estavam lançadas as bases da religião teotihuacana. As civilizações da Mesoamérica – região marcada por um complexo desenvolvimento cultural, que se estende do México central até as porções ocidentais de Honduras, El Salvador e Costa Rica – tinham uma visão de mundo em que o universo estava dividido em três pisos verticais. O inframundo, que representava o mundo dos mortos e das riquezas da fertilidade; a superfície terrestre, em que viviam os homens; e o mundo celestial, em que o âmbito celeste era representado pelas pirâmides. A superfície terrestre, impregnada de elementos dos outros dois pisos, na estreita relação do homem com a morte, a fertilidade e os deuses, dividia-se à maneira de uma flor de quatro pétalas. Tal divisão era ao mesmo tempo político-administrativa (lembremos que a própria cidade era dividida em quatro quadrantes pelas avenidas principais), simbólico-religiosa e, provavelmente, relacionada aos domínios do Senhor das Tormentas. Conhecida como Tlaloc entre os astecas e como Chac entre os maias, essa divindade, segundo cronistas do período Pós-clássico, tinha originalmente um templo no cimo da gigantesca Pirâmide do Sol, ao lado de Tonacatecuhtli, o Senhor do Nosso Sustento.
Os temas centrais da religião teotihuacana eram, portanto, a água e a fertilidade. O que é compreensível tratando-se de uma sociedade com população tão numerosa, cuja manutenção dependia totalmente da benevolência da natureza e dos ‘deuses’ na fertilização dos campos geradores de alimento. Por outro lado, a ênfase em um tema religioso tão universal – o da sobrevivência – satisfazia, igualmente, as populações vindas de outras regiões que ali escolhiam viver, da mesma forma que favorecia seu controle.
Entre 200 a 400 d.C. (fase Tlamimilolpan), Teotihuacan tornou-se um enorme aglomerado urbano. Nos mesmos 22 km2, reuniu uma população em torno de 150 mil habitantes. Esse foi um período de muitas construções, sobretudo dos conjuntos multifamiliares erguidos ao redor dos eixos principais, que tinham como objetivo acomodar essa gigantesca população, organizando-a nos diversos ‘bairros’ – unidades administrativas que representavam o elemento de controle da população pelo Estado.
No interior de cada conjunto viviam famílias que compartilhavam uma mesma ocupação: algumas se dedicavam à fabricação de estuque para cobrir os edifícios, outras à de cerâmica ou pigmentos, ou ainda, ao trabalho lapidário com o jade, quartzos, concha ou ardósia. Essas famílias compartilhavam o mesmo altar doméstico e as pesquisas indicam que havia diferenças internas e que, freqüentemente, uma família se destacava no acesso à riqueza – o que pode significar uma liderança nas atividades profissionais, no culto, na ligação com o poder estatal ou, ainda, uma combinação entre esses aspectos.
Pedras Semipreciosas
Foi durante a fase Xolalpan (400-650 d.C.) que a metrópole teotihuacana atingiu seu maior esplendor: uma população de cerca de 200 mil habitantes reunia-se em uma área aproximada de 23 km2, acomodada em numerosos conjuntos habitacionais que, nessa fase, se multiplicaram para abrigar tamanha multidão. Nesse momento, foram construídos e ampliados os grandes conjuntos, conhecidos genericamente como ‘palácios’, cujas paredes estavam cobertas por belas cenas de pintura mural: Tepantitla, Atetelco, Zacuala e Yayahuala. Por toda a cidade, novas construções eram levantadas, algumas delas sobre edifícios preexistentes.
É ainda nesse período que se incrementam os contatos entre Teotihuacan e outras regiões da Mesoamérica. Na realidade, o contato com o exterior esteve presente desde a origem da cidade, mas, ao contrário das sociedades tardias do México central, Teotihuacan não foi um império. A influência que exerceu sobre outras regiões foi marcada, sobretudo, pelo comércio: Teotihuacan exportava obsidiana – um vidro vulcânico muito utilizado na confecção de adornos e, especialmente, de lâminas usadas para cortar alimentos, tecidos e outros materiais – e cerâmica cerimonial. Em troca, obtinha cerâmicas de luxo regionais, jade e outras pedras verdes, ardósia e materiais marinhos como conchas, caracóis e corais. Juntamente com seus produtos, Teotihuacan exportava também idéias religiosas de grande impacto, que influenciaram várias sociedades mesoamericanas.
O trabalho com as rochas importadas era extremamente importante na organização interna de Teotihuacan. As oficinas lapidárias estavam espalhadas por vários pontos da cidade e dividiam-se em oficinas domésticas, onde eram trabalhados os materiais menos valiosos destinados às camadas médias, e as chamadas ‘oficinas estatais’, nas quais se elaboravam objetos de luxo para fins de culto e para a elite dirigente. Um estudo que realizamos sobre a ardósia e as pedras verdes indica que as primeiras eram trabalhadas nas oficinas domésticas – com exceção dos espelhos de pirita com base de ardósia, que, segundo a historiadora Margaret H. Turner, do Colégio de Artes de Massachusetts, nos Estados Unidos, eram elaborados nas oficinas estatais, assim como o jade e as pedras verdes.
Tais matérias-primas foram essencialmente importantes tanto na movimentação do comércio quanto na representação de conceitos religiosos. Verificamos a presença de pendentes e outros adornos de ardósia em inúmeros enterramentos espa-lhados em vários pontos da cidade. Os mais ricos, no entanto, eram enterrados com espelhos de pirita e ardósia na região lombar. Outros objetos e placas de ardósia eram oferecidos junto aos mortos, com suas superfícies pintadas com motivos de listras vermelhas e chalchihuites (glifo que representa o jade) – símbolo de vida no além-túmulo – ao mesmo tempo em que se depositava uma conta de pedra verde na boca do morto para conservar sua ‘força vital’.
Nosso estudo demonstrou, ainda, que a maior parte dos jades e pedras verdes recuperados na cidade era depositada em oferendas aos deuses e aos mortos pertencentes à elite, em cerimônias realizadas em edifícios públicos, como as pirâmides do Sol e da Lua, o Templo de Quetzalcóatl e ao longo da avenida dos Mortos. Esses materiais eram os mais valiosos em tempos pré-hispânicos, devido precisamente à sua cor que recordava a riqueza da água e da fertilida-de, tão almejadas por essas populações. Na visão de mundo dos teotihuacanos, assim como de outros povos da Mesoamérica, a pedra verde era um elemento pertencente ao inframundo, mundo subterrâneo dos mortos, associado à fertilidade, que era, por natureza, ‘frio’ e ‘feminino’. Assim, os teotihuacanos tinham o costume de cobrir os objetos de jade e pedra verde com zinabre e outros pigmentos vermelhos – uma referência ao sangue, elemento quente, identificado à metade celestial do universo – para simbolizar a união das metades feminina e masculina do cosmos, considerada o princípio criador da vida. Eles acreditavam que esse procedimento atraía a fertilidade.
Os indivíduos das camadas altas da sociedade eram enterrados com suas jóias e insígnias, entre as quais figuravam os ricos adornos de orelha em forma circular que representavam o Sol, narigueiros em forma de borboleta (um símbolo solar), além de colares e braceletes de jade e outras pedras verdes.
Ainda durante a fase Xolalpan, Teotihuacan manteve uma estreita ligação com a área maia e com o golfo do México e a região de Oaxaca, relações iniciadas na fase anterior, cujos vestígios podem ser vistos, sobretudo, nos chamados ‘bairros étnicos’, como o dos Comerciantes e o Oaxaca. A presença desses bairros em Teotihuacan evidencia que a cidade era composta de grupos de diferentes origens e lugares e que o Estado lidava muito bem com os diversos costumes estabelecidos. O bairro dos Comerciantes, por exemplo, revela um padrão arquitetônico totalmente diferente daquele conhecido em Teotihuacan: seus edifícios eram circulares, alguns de adobe, e parte considerável de sua cerâmica provinha das regiões do golfo e da área maia.
Mas, ao contrário de outras civilizações da região, como a maia, a zapoteca, a mixteca ou mesmo a asteca, Teotihuacan não deixou vestígios sobre governantes e famílias dinásticas inscritas na pedra ou no papel amate (códice). A belíssima pintura mural teotihuacana exibe, sobretudo, imagens de animais e de seres fantásticos representados de forma abstrata, freqüentemente considerados divindades. Com exceção de algumas representações não realísticas que têm sido identificadas como sacerdotes e possíveis grupos de guerreiros, não há figuras propriamente humanas, nem representações de linhagens reais e nada que possa evocar a importância da instância humana ou do indivíduo no governo da cidade. A mensagem da arte teotihuacana é a ‘coletividade’, encarnada em uma estandardização artística que se refere ao conjunto da sociedade, representada, artificialmente, de forma ‘homogeneizada’.
Estado Utópico
A ausência de um único centro político na cidade (que tem pelo menos duas concentrações importantes de edifícios públicos, o conjunto das pirâmides e a Cidadela), bem como de representações de reis e linhagens, indicam, sem sombra de dúvida, que Teotihuacan não era governada por reis e sim, provavelmente, por uma junta de diversos segmentos da camada dirigente, talvez sacerdotes, que faziam representar a idéia de um ‘Estado utópico’ governado pelos deuses – precisamente aqueles vinculados à água, à fertilidade e à provisão do sustento –, aos quais os teotihuacanos ofereciam suas ricas pedras verdes. Uma ideologia que, na realidade, era um poderoso instrumento de dominação, com base no controle da mão-de-obra e do comércio regional.
Qualquer que tenha sido o tipo de governo adotado por Teotihuacan, o fato é que vários fatores combinados contribuíram para o colapso da cidade: o excesso populacional e a crescente dificuldade de manter o seu abastecimento, a excessiva exploração da população pela camada dirigente, as lutas pelo poder entre os diferentes grupos étnicos que compunham a sociedade e a descrença no poder divino de governantes cada vez mais exigentes e incapazes de conter a crise. Em algum momento entre os anos de 550 e 650 d.C, o povo teotihuacano, insatisfeito com suas condições de vida e a exploração levada ao seu limite, promoveu um incêndio gigantesco nos principais centros políticos da cidade – entre eles, a Cidadela –, destruindo altares e quebrando imagens de divindades, acelerando o processo de decadência que levou ao fim a clássica civilização teotihuacana.
O período entre 650 a 750 d. C (fase Metepec) marca o colapso final da grande metrópole, que não resistiu às contradições de seu grande crescimento, sendo gradativamente despovoada, tornando-se um lugar de populações dispersas que se distribuíram pelas suas adjacências. A visão dos centros públicos com seus majestosos edifícios impediu que essa área fosse habitada, transmitindo geração após geração uma mensagem clara: ali haviam habitado antepassados divinos que deixaram a sua ‘aura’ sagrada. Aos mortais, ainda em tempos pré-hispânicos, apenas permitia-se visitar o local para render homenagem aos seus sobrenaturais construtores. Hoje, visitantes e pesquisadores certamente não freqüentamos a Zona Arqueológica de Teotihuacan para cultuar os deuses. Mas nossa passagem por ela – seja turística ou científica – não deixa de ser um tributo ao engenho e à grandeza desses antigos habitantes da América.
Fonte: Revista Ciência Hoje. Para baixar a versão digitalizada do artigo (que inclui uma série de figuras e imagens) clique aqui.