terça-feira, 13 de setembro de 2011

A 1ª Coya (governante Inca) no imaginário de Felipe Guamán Poma de Ayala (1616)

Imagem da primeira Coya - Mama Huaco - governante Inca do Tawantinsuyo. Pelo cronista indígena Felipe Guamán Poma de Ayala (1616).


 FRAGMENTOS - HISTORIOGRAFIA

"O cronista indígena cristianizado Felipe Guamán Poma de Ayala [1615/1616] em sua crônica Nueva corónica y buen gobierno apresenta um discurso acerca das origens do governo dos Incas sobre os Andes, onde a personagem Mama Huaco possuí um destaque especial. Ele conta que desta 'señora comenzaron a salir reyes Ingás', e que ela não conheceu o seu pai e nem o pai de seu filho Mango Cápac Inga. Ainda segundo cronista, ela dizia que era filha do Sol e da Lua e que havia se casado com seu primeiro filho Mango Cápac Inga. Para se casar ela pediu a seu pai o Sol o dote, e ele lhe deu, e assim se casaram mãe e filho (Guamán Poma, [1615/1616] 1993: 96).
Mama Huaco é simultaneamente mãe e esposa, podendo ser vista ao mesmo tempo como personagem “extraordinária” e “moralmente negativa” conforme as normas tradicionais de inteligibilidade do gênero no ocidente cristão, ao encarnar uma representação de incesto.
Ainda segundo o cronista, diziam que Mama Huaco era uma grande mentirosa, idólatra e feiticeira, porque falava com os demônios do inferno, com as pedras, penas, montanhas e lagos em cerimônias e feitiçarias. Por isso Mama Huaco é classificada pelo cronista como a criadora das Huacas, ídolos, feitiçarias e encantamentos, com os quais enganava os índios. Os primeiros a serem enganados e assujeitados com pedras, penas e montanhas, teriam sido os índios de Cuzco e que por isso ela foi obedecida, servida e chamada de Coya, rainha de Cuzco. Além disso, conta o cronista que Mama Huaco 'se deitava com todos os homens que ela desejava'. Todas estas histórias, afirma o cronista, foram contadas pelos 'índios velhos' (Ibidem: 64).
O poder e influência de Mama Huaco sobre as pessoas é vista como algo da ordem do demoníaco e da feitiçaria, o que desclassifica suas práticas como negativas, perversas e repulsivas. A liberdade sexual é apontada como uma das perversões ligada à sua representação. A ausência de controle sobre o corpo das mulheres é vista como sinal de desordem, de engano. As cerimônias praticadas e presididas por um agente feminino tornam-se focos de misteriosas feitiçarias, já que utilizam elementos da natureza. No imaginário do cronista a presença de uma mulher exercendo o poder e estando ligada ao sagrado e às huacas, sendo respeitada, influente e temida, só podia figurar como algo da ordem do profano e diabólico, pois na perspectiva cristã o governo legítimo e reconhecido instituído por Deus é masculino. Isso encontra relações com o processo histórico de sobreposição do cristianismo na Europa em que as divindades femininas e os cultos a elas associados foram desclassificados e perseguidos como pagãos, idólatras, demoníacos e perversos. O poder das deusas passa a ser identificado com o demoníaco enquanto poder ilegítimo e negativo, para a instauração de uma ordem monoteísta e patriarcal fundada na imagem de um único Deus supremo e universal masculino (Navarro-Swain, 1995). Assim não surpreende que o governo de Mama Huaco encontre sua relação com o demônio, já que as mulheres no imaginário cristão, tidas como seres frágeis, incapazes e vulneráveis, só podiam encontrar essa força e poder no demoníaco e profano.
Além disso, a descrição de Mama Huaco como 'mundana' (Guamán Poma, [1615/1616] 1993: 67), enquanto mulher que tinha relações sexuais com os homens que ela desejasse, implica também numa desqualificação, pois na perspectiva cristã o conceito de mulher honesta e honrada, bastante presente na Europa cristã dos séculos XVI e XVII, estava ligada ao recato sexual, à virgindade antes do casamento, ao sexo para procriação, à monogamia e à fidelidade ao esposo. Desse modo, o cronista ancora esta imagem nos estereótipos mais familiares aos europeus, de mulher desonrada, prostituta, desonesta e feiticeira, para construir a imagem de Mama Huaco como a responsável pela origem dos Incas e da idolatria nos Andes.
No imaginário cristão do século XVII as mulheres não deveriam estar ligadas ao sagrado e ao poder, muito menos serem livres sexualmente. Essa estranheza presente no Tawantinsuyo foi, portanto, representada a partir de um quadro de pensamento que excluía qualquer uma dessas possibilidades, reforçando os padrões de gênero tidos como legítimos e naturais, e assim reforçando a imagem negativa das mulheres que pareciam fugir desses padrões."

Extraído de OLIVEIRA, Susane Rodrigues de. As representações de Mama Huaco na crônica de Felipe Guamán Poma de Ayala (1616) sobre os Incas. In: STEVENS, Cristina; BRASIL, Katia Crisitina Tarouquella; ALMEIDA, Tânia Mara Campos de; ZANELLO, Valeska. (Org.). Gênero e Feminismos: convergências (in)disciplinares. Brasília: Ex Libris, 2010b, v. , p. 105-116.